segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

CRISTOLOGIA

A CRISTOLOGIA SEGUNDO OSCAR CULLMAN
Por Carlos Eduardo Cavalcanti Alves

INTRODUÇÃO
O estudo da cristologia há muito se acha dividido entre duas correntes principais, no que diz respeito aos pressupostos da pesquisa e à metodologia aplicada. A dogmática, a partir da exegese escriturística, estrutura os dados relativos à pessoa e à obra do Cristo sobre um alicerce bíblico-filosófico, ao moldar os dados da revelação com determinadas estruturas de pensamento e de rigor lógico. O historicismo crítico, por sua vez, parte da suficiência da pesquisa histórica no conhecimento de Jesus Cristo para reconstruir suas características pessoais, seus condicionamentos sócio-religiosos e as nuances da piedade judaico-cristã primitiva, delimitando o perfil do Jesus histórico. A proposta de Oscar Cullman para a investigação cristológica, no entanto, constitui-se uma abordagem diferente, denominada por ele de método histórico-filológico, talvez uma síntese entre dogmática e crítica histórica. Sua análise filológica examina o texto, interpreta-o e utiliza-o como fundamento da compreensão do Cristo, considerando sua pessoa e obra como aspectos indissociáveis - faces interdependentes de um mesmo objeto de estudo -, sem necessidade de "enquadramento" em esquemas filosófico-teológicos. A contribuição das disciplinas históricas é utilizada como ferramenta exegética, dialeticamente confrontado com o texto bíblico, única perspectiva possível, para Cullman, de fundamentação histórica da vida do galileu chamado Jesus de Nazaré.
Tendo como texto base a obra de Cullman Cristologia do Novo Testamento, este trabalho visa ressaltar pontos importantes do pensamento deste teólogo alsaciano, através do confronto com a dogmática clássica em seus matizes atuais e com algumas conclusões do historicismo obtidas nas últimas décadas do século vinte, presentes na obra de Geza Vermes .

A VIDA TERRENA DE JESUS CRISTO
Sua humanidade
O tratamento dispensando por Cullman à pessoa de Cristo é de caráter funcional, isto é, define-o pelos aspectos de sua obra, pelas particularidades de seu ministério e pela singularidade de sua existência, conforme os títulos pelos quais foi identificado, seja pela comunidade cristã, seja por ele mesmo. Assim, escreve no início de sua obra que "... no Novo Testamento não se fala quase nunca da pessoa de Cristo sem que se trate, ao mesmo tempo, de sua obra" [itálicos do autor]. Para Cullman esta é a questão cristológica pertinente, já presente nos sinóticos sob a interrogação de Cristo: "quem o povo diz que eu sou?" As influências judaicas e helênicas na formação do pensamento cristão não sugerem uma redução das categorias deste à mera repetição dos conceitos daquelas, tampouco um sincretismo ou síntese entre as concepções cosmológico-mitológicas peculiares àquelas; antes, proporcionam uma melhor compreensão da nova doutrina que se iniciara utilizando elementos das culturas presentes em seus primórdios.
Ressaltando sua imparcialidade na pesquisa do Jesus histórico e a ausência de motivação teológica em seu trabalho, ainda que aceite os pressupostos da investigação da verdade histórica sobre Jesus como algo factível, Vermes lembra que Jesus foi judeu e não cristão. De maneira diferente, Cullman vê Jesus como o judeu que, através de sua vida, iniciou uma religião diferente do judaísmo, bem como inaugurou uma cosmologia diversa da encontrada no helenismo, não obstante o inegável relacionamento com eles. "Com efeito, devemos considerar a priori, como coisa possível e até provável, que Jesus tenha trazido, por sua doutrina e por sua vida, algo novo...". Contudo, como a igreja cristã ao longo dos séculos respondeu a indagação sobre a pessoa de Jesus, o Cristo? Para Cullman, diversamente da perspectiva neotestamentária. As especulações sobre as naturezas de Cristo ocuparam o lugar central na cristologia patrística por ocasião da luta contra as heresias que surgiam, das mais variadas formas, no seio da cristandade. Continuaram, ainda, presentes no escolasticismo medieval e na Reforma. A unidade de Cristo tornou-se um paradoxo existente entre a dupla natureza e a única hipóstase, afirmada pela fórmula calcedônica e repensada pelos reformadores. (...) Lutero postulou a comunicação de atributos entre as naturezas, a communicatio idiomatum; Calvino insistiu na existência do Logos fora da carne, o extra-calvinisticum.
A dogmática, predominantemente metafísica, deve ceder espaço à visão do evento-Cristo como parte integrante da história da salvação. A partir deste viés, é possível investigar adequadamente a compreensão da revelação pela comunidade cristã conforme expressa no Novo Testamento. "A cristologia não é, portanto, uma ciência das 'naturezas' de Jesus Cristo, mas a ciência de um 'acontecimento', de uma história".
Sem dúvida, qualquer pretensão de se redigir uma biografia de Jesus é inviabilizada pela dificuldade de sua realização - os evangelhos constituem um estilo literário único, redações de eventos e de ensinos de Jesus organizados de forma temática. Por outro lado, não há qualquer questionamento expressivo sobre a historicidade de Jesus de Nazaré. Duas são as afirmações das Escrituras acerca de seu nascimento: foi virginal, de acordo com os relatos de Mateus e Lucas, sem qualquer outra referência a isso no restante do corpus do Novo Testamento; e sua ascendência real, da família de Davi (Rm 1:3). As dificuldades em conciliar estes dois dados persistem, à espera de uma solução mais satisfatória que as sugeridas até hoje; como, por exemplo, a tradicional hipótese de a genealogia mateana ser a de José e a lucana dizer respeito à Maria, ambos descendentes de Davi . Sobre a vida adulta de Jesus, a historiografia reconhece sua intensa atividade como mestre, médico do corpo e da alma, sábio: um galileu carismático, talvez um hasid. O testemunho evangélico registra, interpretado pela teologia sistemática cristã, que o Cristo:
"... começou seu ministério público anunciando o reino vindouro com grande expectativa.Terminou-o com sua morte na cruz. (...) Na crucificação e ressurreição de Jesus (...) o Cristo da fé e o Jesus histórico provam ser um único e mesmo Senhor Jesus Cristo".
Atualmente teólogos dogmáticos têm rejeitado o esquema cristológico do tríplice ofício Profeta-Sacerdote-Rei, alegando sua artificialidade . Cullman reconhece tais títulos como designações de suma importância relacionadas a Cristo - a exceção de "Rei", pelo aspecto político envolvido, que é entendido como sinônimo de Kyrios -, por se tratar do resultado da reflexão cristológica no cristianismo primitivo. Serve-se destes e de outros títulos como categorias para a construção de sua metodologia de pesquisa, na busca pela compreensão dos conceitos que lhes subjazem na cristologia do Novo testamento.

Seu ministério
Em sua atividade pública Jesus fora aceito, indubitavelmente, como um mestre, um rabbí. Sua origem, entretanto, não permite associá-lo aos fariseus e mestres da lei, cuja atividade em nada lembra o pregador itinerante, crescido na Galiléia e sem a tradicional erudição daqueles que se debruçavam sobre a lei a fim de esmiuçá-la em pormenores ritualísticos. A exousia de Jesus, como bem notou Vermes, também não derivava de abstrações filosóficas, mas da associação de Deus à realidade existencial , a exemplo de outros mestres e dos profetas veterotestamentários, o que lhe valeu ser identificado como um destes (Lc 24:19). Talvez a pouca atenção dada pela dogmática ao aspecto profético do ministério de Jesus deva-se a condicionarmo-nos "de tal forma, e com razão, a fazer de Jesus objeto de religião, que acabamos por esquecer que, em nossos registros mais antigos, ele é apresentado não como objeto de religião, mas como homem religioso".
Indo além da caracterização de Jesus como mestre e profeta, Cullman destaca a expectativa judaica da vinda do profeta escatológico. Não obstante a ausência de qualquer idéia reencarnacionista no judaísmo, a esperança consistia no ressurgimento de Moisés, Enoque, Elias, Jeremias ou de algum dos antigos profetas, e era fortalecida pela crença na ressurreição e pelo fim do profetismo nos moldes do Antigo Testamento. Nos sinóticos João Batista é tido como o "Elias", o maior dos profetas (Mt 11:8 e ss). Em outro sentido, contudo, devido à preocupação em refutar a "seita do Batista" e os mandeus, o evangelho de João descreve-o como "uma 'voz' (fwnh) que clama no deserto, como o antigo profeta. Em outras palavras: [João Batista] quer ser somente um profeta à maneira dos do Antigo Testamento" .
Jesus, pelo testemunho joanino e pelo início de Atos, é concebido como "o profeta", o mensageiro escatológico, ainda que tal título seja empregado de modo restrito e relacionado à proclamação do Reino de Deus. Os sinais operados certamente permitiram associações, por parte do povo, com os milagres da antiga era profética (Lc 7:16), característica de seu ministério reconhecida por ele (Mc 6:4). Jesus fora um grande profeta. Mas foi sua pregação o aspecto distintivo de sua posição como profeta escatológico, cuja função consistia em, nas palavras de Cullman:
"... preparar o povo de Israel e o mundo para a vinda do Reino de Deus; e isto não à maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito mais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. (...) A noção de 'profeta' explica, pois, perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a qual atua e fala".
O título de Servo Sofredor de Deus - Ebed Yahweh - é, na opinião de Cullman, central para a cristologia do Novo Testamento. Somente assim é possível enfatizar, com justiça, o conceito de substituição, implicação natural do pensamento judaico de representatividade e de solidariedade corporativa. Ao tentar reformular os dogmas da morte de Cristo e da misericórdia de Deus, com o objetivo de harmonizá-los, certas vertentes atuais da teologia dogmática questionam a categoria de "substituição" como imprópria e carente de base exegética, visto não existir indícios na tradição judaica contemporânea a Jesus que indicassem essa direção, "... fossem correntes ou estivessem combinados da forma proposta por pesquisadores como Oscar Cullman".
Os capítulos 42 e 53 de Isaías são primordiais para a compreensão do Servo - alguém que traria a justiça irrepreensível de Deus às nações pelo Espírito, não pela força militar ou pela opressão - e de seu sofrimento - seria morto em lugar de muitos. A difícil identificação do Servo no judaísmo tem estimulado muitas pesquisas, sem qualquer conclusão definitiva. Não fazia parte da figura messiânica judaica o sofrimento ou a substituição expiatória, exceção feita talvez a alguns intérpretes ou escolas. Contudo, para Cullman, o Ebed é Jesus. Ele rejeita a tese de que as principais declarações de Jesus a respeito de sua morte sacrificial seriam vaticina ex eventu, a exemplo de exegese de Mc 2:18 e ss., contra Bultmann; assim como insiste que, ao aplicar a si indireta ou diretamente a figura do Servo (Lc 22:37), Jesus "fala de uma maneira geral de sua morte, [demonstrando que] Is 53 está por trás". O testemunho do Novo Testamento, segundo Cullman, corrobora sua posição, haja vista a citação de Isaías 53 pelo etíope (At 8), o Cristo como a "nossa Páscoa" (1 Co 5) e o sofrimento de Jesus como parte integrante de sua missão (1 Pe 2). Em particular, cita dois textos do quarto evangelho: a declaração indireta de João Batista a respeito do Ebed (Jo 1:29, 36) e a "citação que a voz celestial faz do começo dos cânticos do Servo. (...) Para ele [João], a vocação batismal de Jesus foi um chamado a assumir a missão do Ebed Iahweh".
"Sumo Sacerdote" como designação aplicada a Jesus somente foi utilizada após a sua morte e proposta como solução cristológica aos questionamentos sobre a relação entre Cristo e o Antigo Testamento. Conquanto o judaísmo tardio, no primeiro século, não tenha descrito a figura do Messias com funções sacerdotais, tal foi o entendimento dos primeiros cristãos e, parece, do próprio Jesus, ao interpretarem o Salmo 110, aplicando-o ao Cristo, o "sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque" (Mc 12:35 ss.). É incontestável, no entanto, que crenças a respeito deste misterioso rei-sacerdote, associando-o a figuras escatológicas, existissem no imaginário judaico e nas especulações cristã-gnósticas anteriores à epístola aos Hebreus - cuja temática versa, principalmente, em torno da superioridade do sacerdócio de Jesus em relação ao sistema sacrificial veterotestamentário.
De acordo com Cullman, o escritor da epístola aos Hebreus baseia-se principalmente no já citado Salmo 110 e em Gênesis 14 para formular seu raciocínio, cuja chave está no capítulo 7, assim como:
"... se esmera em demonstrar que Jesus consuma, de forma absoluta, a função [imperfeita e passageira] do sumo sacerdote judaico, (...) o autor encontra este sacerdócio absoluto e perfeito prefigurado já na figura misteriosa deste Melquisedeque de Gn 14".
Claro está, segundo Cullman, que em Hebreus Jesus consuma em si o sacrifício perfeito e completo, pois ele mesmo é a oferta sacrificada e o sumo sacerdote que oferta. E pela superioridade de sua abrangente obra, decorrente da posição mais elevada que ocupa em relação ao sacerdócio levítico, não há necessidade de repetição do sacrifício que foi realizado uma vez por todas; seu alcance é ilimitado e seus efeitos plenos em sua realização. A perfeição de seu sacrifício inaugura o caminho de aperfeiçoamento dos santos, agora aceitos por Deus e objetos da intercessão de Jesus. Eis a diferença do sumo sacerdote Jesus para o seu correspondente judaico: o caráter intemporal de sua obra e sua identificação com o Ebed, oferta pelo pecado, que não pecou ainda que em tudo tenha sido tentado, semelhante a qualquer ser humano. A influência das concepções judaicas sobre o sumo sacerdote escatológico, ideal, evidencia-se na menção da parusia em 9.28, ocasião em que ele virá ainda como mediador, para "levar-nos à plenitude de nossa santificação".
A dogmática adotada neste trabalho concorda, em linhas gerais, com Cullman. Entretanto, acrescenta que o aspecto vicário da obra de Cristo representa um ato de amor a fim de destruir o pecado e a morte, não uma pura satisfação da ira de Deus. Em 13.10-14 o sacrifício de Cristo é tipificado pela queima das vísceras da vítima "fora do arraial", banindo toda a impureza. Esta é a chave hermenêutica para a compreensão de sua morte, "... numa época em que a fenomenologia e a antropologia (...) voltaram-se para a prática ritual e cúltica para dela extrair nossos sentidos e teorias".

A EXPECTATIVA FUTURA SOBRE JESUS CRISTO
O Messias
Dentre os diversos títulos cristológicos, certamente "Messias" - em grego "Cristo" - é o mais mencionado. É reconhecido não somente por ser associado ao nome próprio "Jesus", como também pela posição ocupada no judaísmo tardio, pois estava ligado à esperança escatológica de tal maneira que outras figuras, não raro, eram incorporadas a ele. No período intertestamentário surgiu o conceito "de que o reino de Deus se seguiria à vitória na terra de exércitos angélicos celestiais sobre as hostes de Satanás". Contemporânea à época neotestamentária fora a concepção do "Messias político", um líder nacional que libertaria o povo escolhido da opressão sócio-político-econômica infligida pelo império romano. Embora estas idéias estejam presentes nos escritos do Novo Testamento, Jesus como o Messias foi compreendido com outra conotação no Antigo Testamento.
A palavra é traduzida pelo particípio "ungido" e se referia a homens escolhidos por Deus para levar a cabo determinada missão; por exemplo, um rei, um sacerdote, um profeta e até alguém como Ciro, um soberano estrangeiro que seria instrumento de Deus no cumprimento de seus desígnios (Is 45.1). Cullman destaca que a promessa feita por Deus a Davi, de perpetuidade de seu reinado através de seus sucessores (2 Sm 7.12 ss.), incitou uma expectativa escatológica, por não ter sido cumprida como se esperava. Em suas próprias palavras:
"Isto não significa que este 'Ungido' aparecerá fora do âmbito terrestre. A palavra 'escatológico' deve ser tomada aqui em seu sentido etimológico, ou seja, temporal. Pensa-se que é preciso uma realeza terrena para trazer a salvação futura. (...) Trata-se de uma esperança escatológica que deve realizar-se inteiramente na esfera terrena".
Na literatura apócrifa judaica o Messias aparece como libertador, ora como quem inauguraria uma era escatológica de paz e liberdade, ora como um rei que aniquilaria os inimigos dos judeus, ora ainda como o sacerdote-redentor da nação. A autoconsciência messiânica de Jesus, de modo diferente, descartou qualquer caráter político de sua obra e tampouco alimentou o anseio de vê-lo ocupando o trono de Davi. A exegese de Cullman de textos do evangelho de Marcos - 8.27 e ss., 14.61 e ss., 15.2 e ss. - e de seus paralelos sinóticos, que se referem à indagação acerca de Jesus como o "Messias-rei", conclui que ele mesmo rejeitou ser assim reconhecido, com respostas evasivas finalizadas com a sua identificação como o "Filho do Homem", cuja missão, estranha ao messianismo judaico, era a de Servo Sofredor, de Ebed Iahweh. Seu reino não é deste mundo e seu trono está à direita do Pai. Para o cristianismo primitivo:
"... a realeza do Filho de Davi era, acima de tudo, a realeza que exercia sobre a igreja. (...) mais potente tornava-se, também, a esperança da manifestação final e total de sua consumação. Pois tornamos a achar no cristianismo primitivo, como no próprio Jesus, a tensão entre 'o já cumprido' e o 'por cumprir-se'. (...) Segundo a fé dos primeiros cristãos é unicamente no futuro que a realeza de Jesus se manifestará de modo visível".

O Filho do Homem
A pesquisa sobre o significado de "Filho do Homem" no Novo Testamento há anos encontra-se em plena efervescência. Estudiosos, como Vermes, têm se restringido à análise filológica do termo original aramaico barnasha para justificar o uso puramente idiomático da expressão, referindo-se a homem em geral e, em particular, a si mesmo "em contextos que denotam reverência, reserva ou modéstia". Rejeitando a interpretação messiânica de Daniel 7 e, conseqüentemente, a exegese de Cullman, assim como descartando a hipótese de Bultmann de Jesus ter se referido a outrem, esses críticos entendem "... que o título apocalíptico de Filho do Homem é uma invenção moderna. Jesus e a igreja primitiva desconheciam por completo um título judaico de Filho do Homem". O estudo histórico-filológico de Cullman adota uma perspectiva mais abrangente do assunto.
Segundo os evangelhos, Jesus referiu-se a si mesmo como o Filho do Homem. Que queria dizer ele? Seria apenas um modo peculiar de tratamento, no aramaico, da primeira pessoa do singular? Não obstante as recentes hipóteses levantadas pelos filólogos, como exposto acima, o título requer outras considerações. Cullman pressupõe a suficiência da análise da idéia judaica de Filho do Homem, porquanto consiste, ao mesmo tempo, em fonte da correspondente noção cristã do termo e em síntese de figuras similares existentes no paganismo. É bem provável que, em círculos judeu-gnósticos anteriores, a expectativa do surgimento do Filho do Homem fosse evidente, em contraste com o perfil político do messianismo do primeiro século. Na apocalíptica judaica o Filho do Homem, em Daniel 7, aparece como representação do povo escolhido; em 4º Esdras como o Messias, salvador enviado pelo Altíssimo; e em Enoque, a mais expressiva obra do judaísmo tardio no tocante a esta questão, um indivíduo representando a nação, "aquele cujo nome é pronunciado pelo 'Ancião de dias' no começo da criação; aquele que, por conseguinte, foi criado antes de todas as criaturas". Se, por um lado, não se deve ignorar a simbologia judaica presente em tais conceitos, por outro se faz necessário destacar a crença nesse ser especial, nesse homem do céu "que, sendo realmente homem, possui uma dignidade divina particular; com efeito, a história das religiões nos ensina que existem especulações relativas a um 'primeiro homem', protótipo divino da humanidade" [itálicos do autor]. Seria ele, no judaísmo, imago Dei em sua integridade, o "Adão ideal", o "Segundo Adão" conforme adaptação da teologia paulina, visto por Cullman como estreitamente ligado à categoria de Filho do Homem, apesar do próprio Jesus não haver feito tal conexão.
As duas possíveis explicações para o uso da expressão - referência ao homem do céu e termo idiomático para denominar "homem" de forma geral - foram reconhecidas por Cullman, com a ressalva da particularidade de seu uso relacionado ao ser celestial, denotando a singularidade da pessoa de Jesus e a patente autodenominação como Filho do Homem, esta notavelmente presente em descrições da parusia, quando será o executor do juízo divino sobre a terra (Mc 8.38) - não há porque pensar na referência ao Filho do Homem como algo de cunho puramente escatológico, visto as inúmeras citações existentes, em diversas situações, do título. Nos logia de Jesus, igualmente, as expressões "homem" e "Filho do Homem" são aplicadas com conotações distintas: a primeira para indicar algum homem, de modo geral; a segunda usada especificamente para Jesus. Mesmo barnasha não possuindo uma tradução inequívoca, os contextos nos quais aparece relacionado a Cristo sugerem ser um título aplicado a ele. Ademais, é simplista "e sumário afirmar que os evangelistas foram os que puseram este título nos lábios de Jesus, (...) a designação de Jesus como 'Filho do Homem' não é, de modo algum, corrente no cristianismo primitivo".
A conclusão de Cullman é que Jesus, ao aplicar tal título a si mesmo, não estava simplesmente realçando sua humanidade, como a dogmática insiste ao opô-lo à idéia de "Filho de Deus". Supõe sua preexistência e sua aparição na era escatológica - conforme a crença judaica corrente no homem celestial -, assim como sua encarnação e humilhação, pois o Filho do Homem representa o povo e o substitui ao sacrificar-se. No restante do Novo Testamento ele é aquele que "esvaziou-se" de sua glória (Fp 2.6 e ss.), fazendo-se "carne" (Jo 1.14) e a figura apocalíptica que virá no juízo (Ap 14.14). Segundo Cullman, exceção feita à interpretação cristológica à luz da imago Dei empreendida por Karl Barth, não há um esforço de construção de uma cristologia calcada na concepção de "Filho do Homem". Esta se justifica, mormente, pela necessidade de redefinição do problema das duas naturezas, insolúvel pela lógica formal.

A OBRA PRESENTE DE JESUS CRISTO
Senhor
A fé cristã não limita a atuação de Jesus ao passado, nem apenas nutre a expectativa da vinda do reino escatológico. Crê, sim, em sua atuação presente junto aos seus e à sua Igreja; pressupõe um ministério atual de intercessão junto ao Pai e de autoridade sobre a comunidade cristã, como cabeça a dirigir os movimentos e ações do corpo.
Cullman vê na denominação "Senhor", Kyrios, a indicação dessa crença por parte dos primeiros cristãos. Destaca, ainda, que tal designação possuía significado específico no meio helênico e, rejeitando qualquer explicação que confira a tal ambiente a exclusividade de dirigir a Jesus este título reconhece, todavia, sua grande influência pelo uso corrente do termo no paganismo helenístico oriental.
Refutando a suposição da inserção de Kyrios puramente pelos escritores helenistas do Novo Testamento, Cullman identifica a aparição da expressão como reação cristã aos "senhores", Kyrioi, divindades pagãs às quais era dispensado este tratamento. Os cristãos reconheciam um só Senhor, Jesus Cristo, cuja revelação desmistificara todos os outros supostos kyrioi (1 Co 8.5 e ss.). Evoluindo de simples referência a autoridades políticas e jurídicas para forma de tratamento ao imperador como reconhecimento de sua divindade; adquirindo uma significação cuja concepção associava estes dois sentidos ao ser empregada no culto ao soberano, prática religiosa oriental e estrategicamente fomentada por Roma; e, por sua conotação religiosa, provavelmente tendo inspirado a gematria do apocalipse joanino, "pode-se dar por coisa certa que a profissão de fé Kyrios Iesous Christos, onde ela ocorre no Novo Testamento, representa uma espécie de resposta polêmica ao mesmo título Kyrios conferido às divindades helenísticas e ao imperador..."
No judaísmo, o vocábulo hebraico Adonai fora substituto do tetragrama sagrado JHVH, prática corrente contemporânea aos primórdios do cristianismo. Nota-se na Septuaginta esta palavra traduzida por Kyrios como referência a Deus. O correspondente aramaico é mar, de onde é derivada a expressão cristã bíblica Maranatha, porém sem ter seu emprego relacionado a Deus nos escritos aramaicos do Antigo Testamento. A discussão recai, diante do ocorrido no helenismo e no culto judaico, sobre a possibilidade do uso aramaico palestino de mar como forma respeitosa de se dirigir a alguém - a exemplo dos discípulos no trato com seu rabbí - ter evoluído ao patamar de título cristológico reconhecido pela comunidade primitiva. Com Bultmann, eruditos defendam a descontinuidade de seu uso, uma origem helênica desta categoria sem algum vínculo com o sitz im leben palestino. Recorrendo à citação litúrgica cristã Maranatha, encontrada também no Didaquê e cuja provável tradução é "Senhor nosso, vem!", Cullman conclui que em aramaico Jesus é descrito como "Senhor" em sentido mais profundo, análogo ao uso judaico e helênico:
"Sem dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termo Kyrios, seu vínculo com o culto do soberano e, primordialmente, o fato de que por este termo os LXX tenham traduzido o nome de Deus, contribuíram para fazer de Kyrios o título mais corrente para designar o Cristo".
A confissão de fé em Jesus, o Kyrios, expressa em 1 Co 12.3, em detrimento do uso aramaico, justifica-se pela oposição aos outros "senhores" através do reconhecimento da superioridade de sua realeza e força, acima de qualquer imperador, pois é o "... 'Rei dos Reis'. Isto significa que o Kyrios é Jesus, e não o imperador (Ap. 17.14)". Urgia fortalecer a convicção dos cristãos a fim de não se curvarem diante do Kyrios Kaisar, tampouco maldizerem a Cristo, quaisquer que fossem as circunstâncias, inclusive a morte. Jesus, o Cristo e Senhor, domina hoje sobre toda a criação e trará a lume não somente isto, como também reinará visivelmente, sujeitando todas as coisas. Contém a tensão entre o "já" e o "ainda não" da dialética histórica cullmaniana e, apesar de não ser a categoria cristológica mais antiga, é a mais significativa, pois "... a partir da cristologia do Kyrios é que se tem empreendido a síntese em que todos os aspectos associados aos títulos cristológicos encontram seu lugar, conforme o papel que tem na história da salvação. (...) é a única que torna possível o que podemos chamar de cristologia do Novo Testamento" [itálicos do autor]. As Escrituras dizem que Jesus assentou-se à direita de Deus, ao ser declarada a sua autoridade exercida em nome do soberano criador, pela interpretação cristã do Salmo 110.1. Segundo atesta a dogmática, a despeito das diferentes interpretações, desde a Reforma, sobre as implicações do senhorio de Cristo e sua presença na eucaristia:
"Quando, na Igreja primitiva, Jesus foi chamado 'Senhor', o dito foi interpretado no sentido de que Deus fala a Jesus. Entre a época de seu ministério terreno e de sua volta no fim do tempo para julgar o mundo, Jesus governa agora como o Senhor da história e da Igreja".

Salvador
Pela primazia do pensamento sobre Jesus como o "Senhor", conforme visto acima, o título "Salvador", tão mencionado em nossos dias, é pouco utilizado no Novo Testamento; quando o é - observação oportuna de Cullman -, Sóter figura como mero complemento de Kyrios. Por outro lado, seu uso percorre os escritos do Antigo Testamento e do judaísmo, desde épocas remotas, como atributo de Deus e do Messias que havia de vir. No helenismo, o termo aplicava-se aos deuses que intervinham na história, às autoridades humanas quando da libertação de determinado povo da opressão e dos males sofridos e, ainda, ao imperador romano. Menos preciso é o seu sentido nas religiões de mistério: provavelmente referia-se às divindades ligadas à imortalidade. Digno de nota é a ausência do termo nos evangelhos, o que demole a idéia da referência a Jesus como taumaturgo, segundo tese de Harnack, e aponta para uma utilização posterior associada à obra total de Cristo como entendida pelos primeiros cristãos, concentrando a discussão numa exegese filológico-histórica à moda de Cullman, evitando uma "psicologização" da atribuição do conceito de Sóter a Cristo, evocada sob o pretexto de se empreender a busca do Jesus "judeu" ou "histórico".
O significado do nome "Jesus" é sugestivo, pois já o identificava como "Salvador", revelando-se o cumprimento das profecias a respeito da salvação de Deus, a consumação da expectativa messiânica e o propiciador da remissão dos pecados de Israel. Para Cullmann:
"Trata-se, pois, principalmente da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo Testamento reserva a Deus. (...) Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias de pensamento que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é Sóter porque nos salvou do pecado".
Uma outra constatação pode ser feita pela ausência de "Salvador" no Novo Testamento: seu uso remonta a um período anterior aos escritos paulinos, cujo estilo menciona a salvação através de Jesus Cristo sem usar o título. Não obstante, a expressão cristã primitiva Icthys sugere a plena consciência dos cristãos do período apostólico a respeito de Jesus Sóter.

A DIVINDADE DE JESUS CRISTO
Sua existência anterior à encarnação
Como bem reconhece Cullman, sua classificação dos títulos atribuídos a Jesus facilita o estudo sistematizado da cristologia do Novo Testamento, não constituindo uma rígida formatação. Isso porque certas designações de Jesus relacionam-se com outros temas além daqueles nos quais estão inseridos. Assim sendo, certos títulos acima estudados implicam a divindade de Jesus ou sua preexistência; contudo, são os de Logos, "Filho de Deus" e "Deus" que sugerem tais categorias de modo mais direto. Em sua introdução à quarta divisão de sua obra, sob o tema "Títulos referentes à preexistência de Jesus", Cullman enfatiza sua convicção que especulações sobre as naturezas da pessoa de Jesus não conferem uma real compreensão da revelação divina:
"... veremos que estes termos [Logos e 'Filho de Deus'] tampouco contemplam uma unidade de essência ou de natureza entre Deus e o Cristo; trata-se de uma unidade de ação, na obra da revelação. (...) resulta daí o paradoxo de que o Pai e o Filho são, ao mesmo tempo, um e diferentes. Se os teólogos posteriores não puderam dar uma explicação satisfatória deste paradoxo, deve-se ao fato que o tentaram por especulações filosóficas".
No início do Evangelho de João e em Apocalipse 19.13 aparece o termo Logos. O evangelista tencionou demonstrar que o Filho do Homem fizera-se carne, tornara-se humano e habitara no mundo. Sua origem, portanto, era celestial e sua preexistência remontava à criação de todas as coisas. "No princípio" foi o início escolhido para o quarto evangelho, a fim de vincular Jesus ao relato de Gênesis, ao bereshit. O conceito de Logos está presente no pensamento grego antigo, sendo amplamente difundido na Antigüidade e tendo influenciado o judaísmo tardio e o helenismo. Seja como força impessoal a reger o universo e a iluminar a razão, seja como personificação com facetas mitológicas, passando pelo idealismo platônico, a idéia do Logos jamais assumiu, a não ser em sua versão joanina, a possibilidade de encarnação. Cullman rejeita, sob a pecha da simplificação esquemática, a proposta de Bultmann que relaciona o Logos judaico-helenista e cristão a um possível modelo gnóstico - mítico e doceta - da personificação de um mediador entre Deus e os homens. Ele tentará provar que o Evangelho de João, "... pelo contrário, submeteu cabalmente a concepção não cristã ou pré-cristã de Logos à suprema e única revelação de Deus em Jesus de Nazaré, dando-lhe assim forma inteiramente nova".
Esta forma, segundo Cullman, conquanto admita certa semelhança à personificação do Logos como mediador e salvador, é influenciada pela reflexão em torno da "Palavra de Deus", do "Verbo", herdada do Antigo Testamento e do judaísmo. No relato da criação, Deus dá origem ao mundo pela sua "Palavra". Em outros textos, como em Salmos e Isaías, a Palavra cumpre os desígnios divinos, na forma de força autônoma a agir no universo. Em Fílon, o Logos começa a ganhar contornos de ente personificado; no judaísmo tardio, a "Sabedoria" aproxima-se ainda mais da noção do Logos joanino (Pv 8:22-26; Sabedoria de Salomão 7.26). Ainda assim, Cullman adverte que "... esta Palavra (...) poder finalmente encarnar-se no quadro histórico de uma vida humana e terrena, é coisa tão estranha a uma como a outra [judaísmo bíblico e tardio]".
O Logos cristão é fruto da reflexão sobre Jesus como a revelação de Deus e, ao mesmo tempo, portador dela. Ele é a "Palavra" e traz a palavra, o anúncio da salvação aos homens. É mais que uma voz, como o Batista; é a revelação de Deus em si, em sua pessoa e obra. Nisso, as semelhanças entre o prólogo de João e os versos iniciais de Hebreus 1 são incontestáveis, não obstante as diferentes ênfases; o primeiro introduz o relato obra sobre a vida e a obra do Cristo encarnado e, o segundo, um sermão apologético da eficácia de seu sacrifício e de sua obra presente. O "Verbo" como hipóstase é descrito no evangelho de João como aquele que "estava com Deus" e "era Deus". Esclarecidas, como estão hoje, as questões filológicas envolvidas e as tentativas de racionalização do problema levantado no prólogo de João, resta a Cullman asseverar:
"Devemos deixar este paradoxo subsistir em toda a cristologia. (...) Aliás, voltamos a encontrar o mesmo paradoxo no curso do [quarto] Evangelho; (...) em virtude da própria natureza do Logos, não se pode falar dele senão em referência à ação de Deus".
Há pontos de convergência e divergência entre Cullman e a dogmática. Enquanto a análise cullmaniana restringe-se à revelação histórica de Deus em Jesus, em termos de instrumentalidade e sem pensar em questões ontológicas, a dogmática permite-se falar dele como Filho, Segunda Pessoa da Trindade e igual ao Pai enquanto Ser, "presença viva de Deus na carne". Por outro lado, o universalismo do Cristo, como revelação de Deus ao mundo e não simples dogma religioso ou possibilidade de sincretismo a partir de outras "revelações" não cristãs, é compartilhado pelas perspectivas cullmaniana e dogmática de compreensão da figura transcendente do Logos.
Sua filiação divina
Ao tratar sobre Jesus como o "Filho de Deus" em Cullman, necessário se faz ter em mente sua proposta inicial, apresentada acima, de desconsiderar a discussão sobre as naturezas e a co-substancialidade do Filho em relação ao Pai. O interesse do estudo deve recair sobre a revelação de Deus em Jesus e no conteúdo dado por este e pelos autores bíblicos aos títulos cristológicos. Portanto, a expressão "Filho de Deus" não diz respeito à essência de Jesus, tampouco se refere apenas à sua divindade, haja vista outros títulos aludirem a tal; antes, descreve o relacionamento específico daquele que fora enviado por Deus para revelar Sua Pessoa e vontade.
A influência helenista do conceito de "Filho de Deus" no cristianismo é vista por Cullman como limitada. Seu uso era vasto, aplicando-se a monarcas, taumaturgos, pessoas que manifestavam poderes sobrenaturais, além de estar presente como expressão comum em obras antigas. "A pretensão destes homens de serem 'Filhos de Deus' baseia-se unicamente na convicção que tinham de serem dotados de forças divinas". O politeísmo helenista não admitiria, como tentou demonstrar Bultmann, uma idéia monoteísta de "Filho de Deus".
No Antigo Testamento, eram assim chamados, de forma mítica, os anjos (Gn 6.2). O povo de Israel é designado como primogênito de Deus (Ex 4.22 e ss.); o rei entronizado, como representante da nação, era adotado por Deus como filho (2 Sm 7.14, Sl 2.7); e o Messias, em sua realeza, provavelmente era visto no judaísmo como eleito do Senhor "para realizar uma missão divina particular, e obedecer estritamente ao chamado de Deus". Nesse sentido parece caminhar o significado de "Filho de Deus" aplicado a Jesus nos sinóticos. Ele não é reconhecido assim por ser um taumaturgo ou possuir poderes extraordinários, mas por estar disposto a levar a efeito a incumbência dada a Ele pelo Pai; este o chama de "Filho" na ocasião do batismo. No relato da tentação, o diabo procura instigá-lo a desejar riquezas e a fazer milagres para que se desvie dos propósitos divinos. Entretanto a expectativa messiânica não se compatibiliza com a concepção do Ebed sofredor, estreitamente associada à missão do Filho. O trecho de Mt 16.16-19 sugere que a confissão de Pedro sobre a filiação de Jesus implicaria na aceitação de seu sofrimento e morte, motivo pelo qual Pedro é duramente repreendido. A conclusão de Cullman é que Jesus designou-se como "Filho de Deus", demonstrando sua consciência de intimidade ímpar com o pai e zelando por separá-la de qualquer associação com uma realeza messiânica.
Dentre os evangelhos, João explora a autoconsciência de Jesus de ser o "Filho" e Marcos ressalta a fé no Filho de Deus; Mateus e Marcos procuram traçar sua origem humana, cujo nascimento virginal denotaria sua origem também divina. A íntima relação entre Jesus e o Pai aparece nos sinóticos com clareza em Mt 11.27, em raro momento, diversamente do quarto evangelho em suas declarações sobre o "Filho". Por isso, exegetas têm questionado a autenticidade da passagem sinótica, classificando-a como glosa deliberadamente confeccionada com moldes joaninos, tese rejeitada por Cullman, entre outros estudiosos de vulto, cujo entendimento é que tal verso "pode, com efeito, 'ter sido pronunciado em virtude de uma consciência da preexistência'".
Nas confissões de fé da igreja primitiva indubitavelmente estava presente a crença no "Filho de Deus". Apesar de pouco aparecer fora dos evangelhos, é evidente no relato do batismo do eunuco etíope em Atos 8, em Paulo (Rm 1.3, confissão provavelmente antiga), na polêmica de 1 João e na fórmula ICQUS. Ao citar 1 Co 15.28, Cullman reitera o que considera o sentido mais profundo da união entre o Pai e o Filho Unigênito:
"Esta é a chave de toda a cristologia do Novo Testamento: falar do Filho não tem sentido senão em relação à obra de Deus e não em relação ao seu 'ser'. (...) Do 'Filho de Deus', como do Logos, se pode dizer: ele é Deus, enquanto Deus se revela em sua obra da salvação, obra da qual fala todo o Novo Testamento".

Jesus como "Deus"
Em Cullman, Jesus é "Deus enquanto se revela". Somente há sentido em se falar de sua divindade quando associada à história da salvação, pois assim Deus se revelara nas Escrituras, cuja concepção de Deus não é esgotada. Em sua opinião, as passagens bíblicas onde Jesus é chamado "Deus" apenas corroboram aspectos contidos em outros títulos cristológicos; por outro lado, pelas óbvias implicações impostas pelo tema, são mais suscetíveis às pressuposições do exegeta, conservadores ou liberais. Nos sinóticos, o próprio Jesus e os evangelistas não se preocupam em descrever o Cristo como "Deus" ou Kyrios. Contudo, "... o cristianismo primitivo não teme aplicar a Jesus, ao dar-lhe o título de Kyrios, tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus". O evangelho de João não afirma que Jesus é simplesmente divino, mas, em seu prólogo e em sua confissão de fé final, que estava com Deus e é Deus em sua revelação (1.1; 1.18 como lectio difficilior; 20.28, cf. 1 Jo 5.20). Visto por Cullman estreitamente relacionado ao estilo joanino, a epístola aos Hebreus cita, em seu primeiro capítulo, o salmo 45:7-9, enfatizando que o vocativo "ó Deus" refere-se a Jesus. Paulo entende ser ele imagem de Deus, expressão de seu ser, o Kyrios; diretamente, porém, apenas em Rm 9.5 e Tito 2.13, é provável filologicamente que o apóstolo aos gentios tenha dito que o Cristo é "Deus". Ao afirmar que esta idéia esteja presente também em 2 Pe 1.1 e Atos 20.28, Cullman conclui que "... naquelas poucas passagens do Novo Testamento onde Jesus recebe o título 'Deus' esta qualificação se liga, por um lado, a sua elevação à dignidade de Kyrios (Epístolas de Paulo, 2 Pedro), e por outro, à idéia de ser, ele mesmo, a revelação (escritos joaninos, Hebreus)" [sic].

CONCLUSÃO
Na última parte de sua obra, Cullman sumariza algumas de suas conclusões e reflete sobre as implicações de sua metodologia histórica. Percebe o mérito de sair do lugar comum de certas escolas teológicas - por exemplo, a expectativa da parusia na igreja primitiva -, através de uma visão mais abrangente e investigativa, portanto menos reducionista do processo de construção das diversas perspectivas cristológicas existentes no Novo Testamento. Em suas palavras:
"Ainda hoje não há outro 'método' de compreender a cristologia, senão aquele que está exposto nos capítulos 5-8 do Evangelho de João. Pois para o homem de então era tão difícil, como é para nós, crer no que para os judeus era um 'escândalo' e para os gregos uma 'loucura'".

BIBLIOGRAFIA
BRAATEN, Carl E., JENSON, Robert W. Dogmática cristã. São Leopoldo: Sinodal, 2 v., 1990.
CULLMAN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Liber, 2001.
VERMES, Geza. Jesus e o mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.

Carlos Eduardo Cavalcanti Alves, bacharel em Administração e pós-graduado em Teologia pela FTBSP, é pastor da 1ª Igreja Batista em Mogi Mirim, SP. Monografia apresentada em 2001, em cumprimento às exigências da matéria Teologia Sistemática, ministrada pelo Prof. Doutor (em curso) Jorge Pinheiro, no curso de Mestrado em Teologia, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo..

http://www.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/jes013.htm

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